sábado, fevereiro 19, 2005

A tensão essencial

No seguimento do meu último post, apetece-me continuar a falar de egoísmo. Kuhn que me perdoe o roubo do título deste breve escrito! Até onde vão os limites do nosso egoísmo? Se é certo que decidir livremente sobre as nossas vidas é um direito que nos assiste numa democracia moderna (e ainda que não o fosse, este bloguista nunca deixaria de afirmar a máxima de Rabelais citada no Manifesto tira-nódoas), a pergunta é... quando é que se torna um dever olhar para os outros? E quem são os outros? Onde é que acaba a nossa Polis? Com quem é que, efectivamente, nos devemos preocupar? Não sei se acontece o mesmo com os caros internautas leitores deste post mas, quanto a mim, sinto frequentemente uma tensão que advém do conflito de preocupações. Refiro-me aqui especificamente à tensão entre o social e o privado, entre as preocupações a que ingenuamente poderemos chamar alheias e aquelas que são mesmo as preocupações do meu foro pessoal. Ou seja... penso nos problemas dos pobres e indigentes a nível mundial, no genocídio do Darfur, nas asneiras do Santana Lopes ou então penso no que fazer para conquistar a rapariga de quem gosto, na minha escova de dentes que vai ficando usada ou em bater no carteiro do meu prédio que continua a pôr publicidade na minha caixa de correio, apesar de eu já lhe ter pedido insistentemente para não o fazer? Sendo certo que é-me quase inevitável viver em função do desejo (não sou budista) e que é-me também por isso quase inevitável descurar estas últimas preocupações mais "pessoais", a questão é... do primeiro grupo de possíveis preocupações enunciadas (política nacional e internacional) quais é que me deverão ser tão essenciais como as mais importantes das minhas preocupações pessoais? Já aqui referi, no meu último post, que considero a forma de egoísmo quase isolacionista como sendo extremamente negativa. Não devemos estar totalmente desatentos aos problemas da nossa comunidade mas... qual é a nossa comunidade? Quão abrangente é ela? Para alguém que viva numa aldeia quase isolada de Trás-os-Montes, provavelmente que a sua comunidade será essa aldeia. Muitas vezes a comunidade é determinada pela tribo, ou pela raça. Nem todos os caucasianos se sentirão como pertencendo a uma comunidade caucasiana (com exclusão, por motivos lógicos, de todos os não-caucasianos) mas, também existem os que sentem que a sua comunidade é precisamente essa. Esse sentimento de identidade pode ser sentido em relação a um bairro, uma cidade ou um país (existente ou com pretensões de existência futura). Actualmente (e confesso que se me inscrever nalguma das hipóteses apresentadas, é nesta) acontece a muitos europeus em relação à Europa... e muitos cosmopolitas (deduzo que a etimologia queira dizer que são aqueles que fazem do kosmos a sua polis) consideram que a sua comunidade é o mundo inteiro. Basta passarem pela cidade universitária para espiarem a formulação antiga de cidadão do mundo nas paredes do Metro. Todo o tipo de semelhanças são utilizadas para legitimar uma pretensa comunidade: clube de futebol, tipo de música, etc. Obviamente que, quando os sentimentos de pertença, de identificação e de coesão e solidariedade de grupo são fortes, o indivíduo preocupa-se evidentemente com os problemas da sua comunidade como se eles fossem exclusivamente seus. Assim sendo, uma pergunta final... até que ponto é que nos devemos abandonar ao cumprimento dessas causas? Valerá a pena acabarmos por descurar a nossa vida mais "privada" em prol dos problemas da comunidade? (Oops, foram 2 perguntas finais... e agora vai outra). Resumindo e concluindo: Em que ponto se deve estabelecer este equilibrio frágil entre preocupações e motivações para a acção? Agradecia que me ajudassem, lançando alguma luz nas muitas questões que aqui coloquei. I'll be waiting :)

2 Comments:

Blogger LivrePensador said...

Ora bem, um comentário escrito em ferriano, que coisa agradável :)
Vejamos: ninguém aqui se quer subtrair à "perspectivação funcional do mundo enquanto mundo para mim." Não duvido que a totalidade daquilo que se me apresenta apenas ganhe sentido mediante a atribuição de eixos funcionais colocados por mim em redor do pólo último de instanciação daquilo a que chamamos vida: eu. Assim sendo, para mim qualquer ente se afigura precisamente como isso... um ente-para-mim. Ok, agora que já escrevi uma palavra com 2 hifens, já estou farto. Passemos àquilo que tu colocas em questão (e que é uma questão bem radical):"talvez interesse muito mais reflectir acerca do modo como é possível a inserção plena no estatuto ontológico de ser que partilha a existência com tudo quanto está a ser (inserção essa que resultasse na possibilidade de afecção por parte de tudo isso com o qual se encontra a partilhar essa existência)" Sinceramente, não me parece possível. Ainda que fosse possível, tenho dúvidas de que fosse desejável. E se fosse possível, desejável e alguém o tentasse colocar em prática... duvido que fosse no Ocidente. O que tu referes é claramente uma ligação vital do meu eu ao ser das coisas, mas repara que não ao ser de um grupinho de coisas, mas sim ao ser de todas as coisas, à totalidade de tudo o que existe. Extrapolámos claramente o domínio do humano e até do animal. Agora não me limito a sofrer com os males humanos... também tenho que sofrer com os dos babuínos. Mas não contente com isso, as plantinhas também me preocupam; mas oops, ainda não chega... venham-me as preocupações das sinapses e do mundo da física quântica, que eu estou disposto a ser afectado pela afectação de todas as coisas! (Não sei bem até que ponto é que podemos falar da afectação de tudo o que não seja um organismo e que não tenha sistema nervoso, mas não faz mal.) Convenhamos, sou mais modesto. A minha questão é especificamente humana, e mesmo dentro do grupo humano me debato com a eventual circunscrição a algum tipo de grupo no âmbito do estabelecimento daquilo que deva ser a nossa comunidade. Quem serão os membros da Humanidade pelos quais eu devo sofrer? Por quem devo eu lutar? (Se preferires, sendo certo que sofro por mim e luto por mim... que determinações anónimas e mundanas, com que entes mundanos me devo eu preocupar através do meu interesse? Em quem é que o meu desejo, sendo uma identidade de identidades, deve repousar?) Qual é a minha terra, para que eu possa saber quem são os seus filhos?? Seja qual for a resposta a esta pergunta, a minha convicção é que eu me devo efectivamente preocupar com eles. Mas atenção, esta é apenas uma das muitas questões levantadas no meu post original. Tás à vontade para continuar o debate...

22/2/05 11:23 da tarde  
Blogger LivrePensador said...

l0l. Parece que toquei num ponto sensível :p Não leves a mal a ironia da minha resposta, é simplesmente a forma como argumento, não pretendo ser ofensivo. Sinceramente, também não me parece que exista, pelo menos em sentido estrito, "ferriano" ou "caeirês", e isto apesar de ambos os professores apresentarem um nível interessante de pensamento e produção próprios. Não quero sublinhar nenhuma dependência intelectual (e hey, olha que nós até sabemos bem de onde eles vão retirar as suas inspirações... Kierkegäard, Heidegger) mas pareceu-me sinceramente que o tipo de análise que tentaste operar foi um pouco desfasada do tópico que estava em causa. Agradeço-te pelos comentários e por teres paciência para ler o que escrevo, mas quando entramos em debate... debatemos, dê lá isso o resultado que der :)
Ademais, apesar de não fazer sentido falar em sentido absoluto em ferriano, parece-me fazer pleno sentido classificarmos algo como sendo ferriano até porque, em termos biográficos, fomos apresentados a diversas problemáticas e análises pelo Ferro. Assim sendo, ainda que as coisas não sejam ferrianas em si, sê-lo-ão sempre para nós!
Indo ao ponto que interessa para a discussão, nota que eu me tento mover no plano do dever ser, e não apenas na crueza fáctica daquilo que é; efectivamente não nos vem inatatamente marcada uma simpatia pela humanidade nem muito menos pela totalidade das coisas que são. Assim sendo, numa condição de estado da natureza é completamente impossível algo como seja o respeito pelo próximo. Mas eu pretendo extrapolar um pouco esse domínio, falando daquilo que o humano, com a sua capacidade de decisão e de acção pode efectivamente fazer para se melhorar a si próprio e ao seu grupo.
Assim sendo, não nego minimamente que para um eremita possa interessar muito mais um abeto que a fome e nem sequer que para um estudioso da física teórica possam interessar muito mais todas as questões especulativas da mecânica quântica do que os problemas bem mais chatinhos do facto efectivo de uma bomba de hidrogénio poder matar milhões de pessoas. O que eu me estou a perguntar é se será desejável que, em todos os casos, exista uma constante ausência de preocupação face às questões que envolvem completamente os outros, enquanto grupo humano. No fundo, é uma questão ética, do puro domínio do dever-ser, sendo no entanto aqui devidamente contextualizada no quadrante político. A ênfase que eu quero colocar, no meio disto tudo, é que a alienação cívica é um factor negativo e que a apatia perante tudo aquilo que pensamos que não nos afecta directamente é pura e simplesmente estúpida. Faz-me confusão que tenhamos vistas curtas, e gostaria de ver o nosso poder criador a transformar algo, através da nossa acção. No fundo, é simplesmente isto.

27/2/05 1:12 da manhã  

Enviar um comentário

<< Home