Gonçalo M. Tavares
"No passeio, uma tampa de ferro fora do sítio por pouco não lhe provocara uma queda. Calvino parou e olhou lá para dentro: canalizações várias, em trajectórias circulares e outras, como se alguém tivesse construído um percurso desportivo para a água se divertir antes de se tornar apenas útil nas torneiras.
Lembrou-se logo da relação que um certo homem tinha com os buracos.
Tal homem olhava primeiro para cima e depois para dois lados confirmando que não havia nenhum perigo.
Depois sim, completamente seguro, deixava-se cair."
Lembrou-se logo da relação que um certo homem tinha com os buracos.
Tal homem olhava primeiro para cima e depois para dois lados confirmando que não havia nenhum perigo.
Depois sim, completamente seguro, deixava-se cair."
Gonçalo M. Tavares - O Senhor Calvino
Gonçalo M. Tavares, um dos escritores portugueses de nova geração. Acabei de o descobrir. Ou melhor, não a ele, cuja fotografia já tinha visto, com quem já me tinha cruzado na rua e sobre quem Eduardo Prado Coelho se farta de escrever, mas à sua escrita. Verdade seja dita, a fama, pelo menos entre os meios literatos portugueses, precede-o. Mas não há melhor cartão de visita que a própria produção escrita do autor. E deixem-me que vos diga... esta escrita é deslumbrante. Ofereceram-me recentemente O Senhor Calvino, o livro mais recente da colecção O Bairro, que é uma colecção onde Tavares escreve livremente algo parecido a contos, levemente inspirados por personagens históricas e onde dá largas à sua prodigiosa imaginação. O Senhor Calvino tem 71 páginas, onde a prosa do autor é entrecortada por ilustrações simples e intrigantes de Rachel Caiano. A simbiose entre a escrita e o desenho é interessante, porque aquilo que melhor caracteriza Gonçalo M. Tavares é a sua notável mestria em nos conduzir ironicamente até ao absurdo. E esse absurdo, a espaços colado a uma espécie de surrealismo, é muito bem complementado pela simplicidade de traços de Rachel Caiano. É impossível pegar no livro e não ceder quase imediatamente à tentação de o ler de seguida, até porque páginas escritas deve ter pouco mais de 50. A leitura torna-se tão aditiva que dá imediatamente vontade de ir comprar os outros 17 livros que o jovem escritor (nascido em 1970) escreveu em menos de 5 (!) anos!
Há algo de diferente na escrita de Tavares, embora eu ainda não consiga propriamente dizer o quê. Tenho dificuldade em encaixá-lo perfeitamente nas categorias que conheço. É uma escrita que talvez seja mais para ser lida, simplesmente fruída, que pensada. No entanto, há momentos de pura e simples estupefacção que nos obrigam mesmo a parar por um pouco, e reflectir. É que este escritor sabe manipular as nossas expectativas sobre aquilo que pensamos irá logicamente seguir-se em termos de acção para depois, num volte-face repentino... touché! Acontece exactamente o contrário e cai-nos o queixo. É um autor que gosta muito de repetições. As descrições são por vezes minuciosas na sua ironia. Os jogos de palavras são constantes. Esta ironia é por vezes fina, por vezes cruel. Mas deixa-nos sempre ansiosos por mais. Ainda não sei bem o que dizer deste Gonçalo M. Tavares. Tem o mesmo primeiro nome que eu. Gabo-lhe a inteligência, o sentido de humor e a aptidão para a escrita. Pergunto-me se escrevendo a um ritmo tão alucinante, tudo o que escreverá será igualmente tão delicioso. Não tenciono esperar muito para descobrir. Quanto a vocês, corram. Não vá algum de vós morrer brevemente e deixar escapar a oportunidade de fruir de uma leitura deste gabarito.
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