segunda-feira, fevereiro 13, 2006

A ironia dos Eventos

Por vezes, dou por mim a ter a estranha sensação de que a realidade tem sentido de humor. De que há algures, não sei onde, algo ou alguém que nos observa e se ri das nossas tentativas desesperadas de levarmos a cabo os nossos objectivos. Chamem-me paranóico se quiserem, mas quando surge o inesperado o primeiro alarme que dispara é o meu sentido interno de auto-crítica satírica. Por outras palavras, eu rio-me de mim próprio. Há quem diga que isso é maturidade. Eu talvez esteja mais inclinado a dizer que é instinto de sobrevivência. Se não me rir vou fazer o quê?

O inesperado é, por definição, aquilo que está para lá de qualquer previsão razoável. É algo como estarem em pleno Janeiro no meio de uma vaga de frio, sabendo que a média de temperaturas dos últimos dias foi abaixo de 0 graus, que aqui ao lado em Espanha já morreram 300 sem abrigo com a neve que já há 2 semanas cai ininterruptamente, todos os boletins metereológicos preverem que hoje à tarde vai estar um frio como não há memória em Portugal, vocês agasalharem-se como se se estivessem a preparar para uma excursão ao Pólo Norte e, de repente, quando saem de casa são abrasados por um Sol que faz com que estejam 50 graus à sombra e vos derrete que nem um bocado de vaqueiro com alho no meio do Saara. Isso é o inesperado. É a rápida, decisiva, e incontrolável torção dos factos de modo tal que vos deixa sem resposta. É a incomensurabilidade entre a expectativa e a experiência. É aquilo que vos deixa com aquele comentário tão típico e inteligente: "Não pode" (Obrigado, Gato Fedorento)

Quer dizer, que eu suspeitasse que um ladrão me pudesse assassinar, já que vivo no Rio de Janeiro e sou podre de rico, tenho uma mansão sumptuosa e vivo paredes meias com a pior favela da cidade, parecia-me legítimo. Por isso comprei a primeira tranca, a da porta principal. Por isso fui, uma a uma, tapando as janelas e as portas. Por isso, Deus meu, acabei por arranjar aquele alarme principal que fecha automaticamente todas as saídas da casa, caso um ladrão entre e eu me aperceba, ficando ele assim impossibilitado de escapar enquanto eu chamo a polícia. Agora que eu tenha ficado preso em casa quando a minha filha decidiu roubar-me o comando do alarme e me tenha degolado com a faca do talho, isso era inesperado.

Chega de exemplos. O cerne da questão é que podemos passar uma vida a tentarmos evitar algo e no fim apercebermo-nos de que o verdadeiro perigo vinha do outro lado. Isso mostra-nos o carácter verdadeiramente arbitrário da realidade. E é nessas alturas que uma pessoa desconfia que algures, algum Deus cínico deve estar engasgado até às lágrimas de tanto rir.

sábado, fevereiro 11, 2006

O amor é...

sorte. Encontro casual
De duas almas perdidas,
há muito a lamber feridas.
Se antes da gélida morte
O caminho encontrares
Não menosprezes o lote
Que a Moira te concedeu.
No ponto onde os olhares
Se encontrarem, aí terás
O teu Infinito... Sê Orfeu
E canta o cântico divino
Que congelará no Tempo
sedento o instante rabino.

domingo, fevereiro 05, 2006



Que os países muçulmanos são atrasados, poucos ocidentais duvidam. E não se veja nisto uma afirmação gratuita apenas por eu ser ocidental e estar a argumentar a partir de um ponto de vista situado automaticamente justificado pelo sistema de valores vigente na minha sociedade. Todo o ponto de vista é situado. Nunca estive num país muçulmano. Tudo o que sei do que lá se passa é mediado por orgãos que bem podem fornecer uma imagem redutora das coisas. Mas mesmo que lá fosse e vivesse talvez nunca os entendesse a sério, pelo simples facto de não ter sido criado entre eles nem estar impregnado pela sua cultura. Em resumo, eu não posso estar dentro da cabeça de um muçulmano criado no médio oriente.

Acontece que vivemos numa sociedade multicultural com consciência histórica, e que tem noção do quanto as pessoas e as mentalidades podem mudar quando se mudam as épocas ou posições geográficas. Sabemos bem o quanto é relativa a noção de verdade e quantos mal entendidos e conflitos podem ocorrer devido a divergências sobre coisas que todos consideram tão óbvias que nem deviam ser discutidas... embora se divirja sobre essas coisas que tão óbvias são. Pois bem, somos multiculturais e relativistas. Todo e qualquer juízo de valor que façamos vê a sua pretensão à universalidade estilhaçada pelo facto de um juízo de valor ser sempre um argumento viciado: é o próprio sistema de valores historicamente imposto que me faz argumentar a partir dele, para considerar o que é bom ou mau não a posteriori mas a priori. Então... e agora? Deixamos de argumentar porque tudo pode ser explicado com base em culturas e sistemas de valores diferentes? Deixamos que aconteça tudo e mais alguma coisa e passamos simplesmente a descrever em vez de efectivamente avaliarmos o que é bom e o que é mau? Definitivamente, isso não pode acontecer.

E é com esta certeza que analiso os últimos acontecimentos relativos à questão das caricaturas do profeta Maomé. Retomando a abertura do post: que os países muçulmanos são atrasados, pouca gente duvida. Que eles façam o que bem entendem dentro das suas fronteiras (desde que não ultrapasse certos limites, como o genocídio) teremos que lhes conceder. Podemos não concordar com algumas práticas (apedrejamento de mulheres por alegadada infidelidade?) mas enquanto estados soberanos capazes de se governar que são, não temos a maior parte das vezes o direito de interferir. Agora... virem eles dizer o que é que podemos ou não fazer neste cantinho civilizado do mundo? Inaceitável. Para eles a não-representação do profeta é um direito inalienável? Pois para nós a liberdade de expressão é tão inalienável quanto para eles o respeito por Maomé. E assim estamos num impasse. Cada cultura não se consegue entender sobre o que é ou não fundamental. E ficaríamos todos muito contentes neste impasse não fosse o facto de eles andarem a destruir embaixadas da Dinamarca por tudo quanto é sítio. Por causa de caricaturas editadas por um par de jornais dinamarqueses, franceses e espanhóis?????

Que eles são atrasados, já nós sabíamos. Que Salman Rushdie teve uma fatwa emitida contra ele pelo Ayatollah Khomeini, o grande líder religioso do poderoso Irão dos anos 80 e 90, por ter escrito os Versículos Satânicos, e que teve de andar 9 anos fugido em parte incerta... já nós sabíamos!!!! Eu não sei é se eles sabem que nós tivemos Voltaire. Já sabia que a Europa era dos únicos sítios minimamente laicos que existem no mundo. Também sei que devemos ter respeito pelas convicções dos outros, sejam elas políticas ou religiosas. Agora venho a saber que Muqtada al-Sadr, um dos grandes líderes religiosos Shiitas do Iraque, responsável durante muito tempo por grande parte da resistência armada aos Estados Unidos, emitiu também uma fatwa contra os jornalistas responsáveis pelas caricaturas. Para quem não sabe, uma fatwa é uma opinião emitida por um líder religioso qualificado para tal, que tem carácter vinculativo de ordem, de comando, pelo menos para quem a aceita. Geralmente, as mais conhecidas são as que mandam matar alguém. E foi mais ou menos isso que al-Sadr fez. Assim, qualquer fanático religioso que não tenha mais o que fazer pode sempre tentar matar um jornalista acusado de impiedade para com o Islão. Sempre é mais fácil do que ir para o Iraque lutar contra os marines. Tudo isto só me leva a perguntar, calmamente... ENTÃO MAS ESTÁ TUDO MALUCO? OLHEM, TAMBÉM PUBLIQUEI A INFAME CARICATURA. EMITAM UMA FATWA CONTRA MIM, FILHOS DA PUTA!

"Não concordo com o que dizes. Mas defenderei até à morte o teu direito a dizê-lo." [neste caso, a desenhá-lo.]

Voltaire

sexta-feira, fevereiro 03, 2006

Gonçalo M. Tavares

"No passeio, uma tampa de ferro fora do sítio por pouco não lhe provocara uma queda. Calvino parou e olhou lá para dentro: canalizações várias, em trajectórias circulares e outras, como se alguém tivesse construído um percurso desportivo para a água se divertir antes de se tornar apenas útil nas torneiras.
Lembrou-se logo da relação que um certo homem tinha com os buracos.
Tal homem olhava primeiro para cima e depois para dois lados confirmando que não havia nenhum perigo.
Depois sim, completamente seguro, deixava-se cair."

Gonçalo M. Tavares - O Senhor Calvino
Gonçalo M. Tavares, um dos escritores portugueses de nova geração. Acabei de o descobrir. Ou melhor, não a ele, cuja fotografia já tinha visto, com quem já me tinha cruzado na rua e sobre quem Eduardo Prado Coelho se farta de escrever, mas à sua escrita. Verdade seja dita, a fama, pelo menos entre os meios literatos portugueses, precede-o. Mas não há melhor cartão de visita que a própria produção escrita do autor. E deixem-me que vos diga... esta escrita é deslumbrante. Ofereceram-me recentemente O Senhor Calvino, o livro mais recente da colecção O Bairro, que é uma colecção onde Tavares escreve livremente algo parecido a contos, levemente inspirados por personagens históricas e onde dá largas à sua prodigiosa imaginação. O Senhor Calvino tem 71 páginas, onde a prosa do autor é entrecortada por ilustrações simples e intrigantes de Rachel Caiano. A simbiose entre a escrita e o desenho é interessante, porque aquilo que melhor caracteriza Gonçalo M. Tavares é a sua notável mestria em nos conduzir ironicamente até ao absurdo. E esse absurdo, a espaços colado a uma espécie de surrealismo, é muito bem complementado pela simplicidade de traços de Rachel Caiano. É impossível pegar no livro e não ceder quase imediatamente à tentação de o ler de seguida, até porque páginas escritas deve ter pouco mais de 50. A leitura torna-se tão aditiva que dá imediatamente vontade de ir comprar os outros 17 livros que o jovem escritor (nascido em 1970) escreveu em menos de 5 (!) anos!
Há algo de diferente na escrita de Tavares, embora eu ainda não consiga propriamente dizer o quê. Tenho dificuldade em encaixá-lo perfeitamente nas categorias que conheço. É uma escrita que talvez seja mais para ser lida, simplesmente fruída, que pensada. No entanto, há momentos de pura e simples estupefacção que nos obrigam mesmo a parar por um pouco, e reflectir. É que este escritor sabe manipular as nossas expectativas sobre aquilo que pensamos irá logicamente seguir-se em termos de acção para depois, num volte-face repentino... touché! Acontece exactamente o contrário e cai-nos o queixo. É um autor que gosta muito de repetições. As descrições são por vezes minuciosas na sua ironia. Os jogos de palavras são constantes. Esta ironia é por vezes fina, por vezes cruel. Mas deixa-nos sempre ansiosos por mais. Ainda não sei bem o que dizer deste Gonçalo M. Tavares. Tem o mesmo primeiro nome que eu. Gabo-lhe a inteligência, o sentido de humor e a aptidão para a escrita. Pergunto-me se escrevendo a um ritmo tão alucinante, tudo o que escreverá será igualmente tão delicioso. Não tenciono esperar muito para descobrir. Quanto a vocês, corram. Não vá algum de vós morrer brevemente e deixar escapar a oportunidade de fruir de uma leitura deste gabarito.