domingo, fevereiro 05, 2006



Que os países muçulmanos são atrasados, poucos ocidentais duvidam. E não se veja nisto uma afirmação gratuita apenas por eu ser ocidental e estar a argumentar a partir de um ponto de vista situado automaticamente justificado pelo sistema de valores vigente na minha sociedade. Todo o ponto de vista é situado. Nunca estive num país muçulmano. Tudo o que sei do que lá se passa é mediado por orgãos que bem podem fornecer uma imagem redutora das coisas. Mas mesmo que lá fosse e vivesse talvez nunca os entendesse a sério, pelo simples facto de não ter sido criado entre eles nem estar impregnado pela sua cultura. Em resumo, eu não posso estar dentro da cabeça de um muçulmano criado no médio oriente.

Acontece que vivemos numa sociedade multicultural com consciência histórica, e que tem noção do quanto as pessoas e as mentalidades podem mudar quando se mudam as épocas ou posições geográficas. Sabemos bem o quanto é relativa a noção de verdade e quantos mal entendidos e conflitos podem ocorrer devido a divergências sobre coisas que todos consideram tão óbvias que nem deviam ser discutidas... embora se divirja sobre essas coisas que tão óbvias são. Pois bem, somos multiculturais e relativistas. Todo e qualquer juízo de valor que façamos vê a sua pretensão à universalidade estilhaçada pelo facto de um juízo de valor ser sempre um argumento viciado: é o próprio sistema de valores historicamente imposto que me faz argumentar a partir dele, para considerar o que é bom ou mau não a posteriori mas a priori. Então... e agora? Deixamos de argumentar porque tudo pode ser explicado com base em culturas e sistemas de valores diferentes? Deixamos que aconteça tudo e mais alguma coisa e passamos simplesmente a descrever em vez de efectivamente avaliarmos o que é bom e o que é mau? Definitivamente, isso não pode acontecer.

E é com esta certeza que analiso os últimos acontecimentos relativos à questão das caricaturas do profeta Maomé. Retomando a abertura do post: que os países muçulmanos são atrasados, pouca gente duvida. Que eles façam o que bem entendem dentro das suas fronteiras (desde que não ultrapasse certos limites, como o genocídio) teremos que lhes conceder. Podemos não concordar com algumas práticas (apedrejamento de mulheres por alegadada infidelidade?) mas enquanto estados soberanos capazes de se governar que são, não temos a maior parte das vezes o direito de interferir. Agora... virem eles dizer o que é que podemos ou não fazer neste cantinho civilizado do mundo? Inaceitável. Para eles a não-representação do profeta é um direito inalienável? Pois para nós a liberdade de expressão é tão inalienável quanto para eles o respeito por Maomé. E assim estamos num impasse. Cada cultura não se consegue entender sobre o que é ou não fundamental. E ficaríamos todos muito contentes neste impasse não fosse o facto de eles andarem a destruir embaixadas da Dinamarca por tudo quanto é sítio. Por causa de caricaturas editadas por um par de jornais dinamarqueses, franceses e espanhóis?????

Que eles são atrasados, já nós sabíamos. Que Salman Rushdie teve uma fatwa emitida contra ele pelo Ayatollah Khomeini, o grande líder religioso do poderoso Irão dos anos 80 e 90, por ter escrito os Versículos Satânicos, e que teve de andar 9 anos fugido em parte incerta... já nós sabíamos!!!! Eu não sei é se eles sabem que nós tivemos Voltaire. Já sabia que a Europa era dos únicos sítios minimamente laicos que existem no mundo. Também sei que devemos ter respeito pelas convicções dos outros, sejam elas políticas ou religiosas. Agora venho a saber que Muqtada al-Sadr, um dos grandes líderes religiosos Shiitas do Iraque, responsável durante muito tempo por grande parte da resistência armada aos Estados Unidos, emitiu também uma fatwa contra os jornalistas responsáveis pelas caricaturas. Para quem não sabe, uma fatwa é uma opinião emitida por um líder religioso qualificado para tal, que tem carácter vinculativo de ordem, de comando, pelo menos para quem a aceita. Geralmente, as mais conhecidas são as que mandam matar alguém. E foi mais ou menos isso que al-Sadr fez. Assim, qualquer fanático religioso que não tenha mais o que fazer pode sempre tentar matar um jornalista acusado de impiedade para com o Islão. Sempre é mais fácil do que ir para o Iraque lutar contra os marines. Tudo isto só me leva a perguntar, calmamente... ENTÃO MAS ESTÁ TUDO MALUCO? OLHEM, TAMBÉM PUBLIQUEI A INFAME CARICATURA. EMITAM UMA FATWA CONTRA MIM, FILHOS DA PUTA!

"Não concordo com o que dizes. Mas defenderei até à morte o teu direito a dizê-lo." [neste caso, a desenhá-lo.]

Voltaire

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

nao tenho o habito de comentar os posts so proque sim... mas grande post senhor livre pensador. e ja agora gosto do seu poem que vem a seguir.

8/3/06 5:14 da tarde  

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