Aproveite-se a primeira nódoa lançada a debate pelo meu colega bloguista: os ataques ad hominem constantemente utilizados pelos políticos cá do burgo, no contexto da campanha eleitoral para as legislativas de 20 de Fevereiro. Admito a minha parcial falta de atenção em relação a tudo o que se tem feito na campanha. Se quisesse falar com cunho de verdadeira seriedade sobre isto, teria que acompanhar a campanha avidamente e todos os dias. Mas isso não impede que tenha visto algumas coisas que me desagradaram; focá-las e tentar discernir o que elas implicam será o objectivo deste post.
Aquilo que me parece mais desagradável é sem dúvida a campanha do PSD: desde outdoors a anúncios televisivos, a mensagem mais forte que se consegue passar é: o PS não presta. Eles fugiram, eles são maus. Vêem-se cartazes com a cara do engenheiro José Sócrates e presumíveis companheiros de governo a preto e branco com fundo colorido, acompanhadas de mensagens pouco abonatórias, vêem-se anúncios a a ridicularizar o PS e o BE e, acima de tudo, lançam-se boatos. Até que ponto é que esta última actividade está directa ou indirectamente ligada ao PSD, é impossível de aferir. Eu certamente não o sei, e tudo o que sugerir será pura especulação... mas a hipótese que eu avento, e que é nada menos que óbvia (enquanto hipótese explicativa) é muito simples... pretende-se utilizar uma estratégia extremamente em voga nos EUA... denegrir de forma mais ou menos encoberta o partido contrário, colocando o enfoque da campanha numa tentativa de derrubar o adversário. É extremamente simples: se não ganharem eles, ganhamos nós. Como eles estão à partida numa melhor posição para vencer e se todos jogarem limpo eles acabarão por ganhar... vamos mas é não nos içarmos a nós e antes rebaixá-los a eles... assim pode ser que mantendo-nos nós neste nível de mediocridade ganhemos, se conseguirmos pintar neles uma imagem ainda mais baixa que a nossa!
Em abono da verdade, nos E.U.A. não é preciso um partido pensar que tem menos hipóteses do que o outro de vencer as eleições para que incorra neste tipo de jogo, ele tem acontecido de forma regular nos últimos tempos. Não pretendo transpôr para aqui uma visão maníqueista, mas, uma vez mais, lá como cá, quem começou a jogar este jogo foi a direita. Ao longo dos últimos anos, os Republicanos, sob a tutela de Karl Rove (não, não creio que ele seja Darth Vader, mas também não é propriamente um rapaz simpático) tornaram-se exímios na arte de espalhar boatos. Utilizam-se todos os tipos de estratégias sórdidas. Um exemplo: telefonam para a casa de eleitores dos chamados "swing states" e fazem perguntas do género "Se você soubesse que o mr. blablabla (candidato democrata) era alcoólico, teria maior ou menor probabilidade de votar nele?" Ou seja, não se afirma directamente nada sobre o candidato em questão, mas insinua-se de forma sub-reptícia a possibilidade de tal ser um facto e acaba por se transparecer essa imagem pouco favorável do candidato adversário. Este é apenas um dos exemplos mais refinados, mas de facto vê-se de tudo, desde padres incentivados a fazer proselitismo nas igrejas e a passarem a mensagem de que se os democratas ganharem o Inferno subirá à Terra até aos anúncios de televisão mais infames. É claro que os Republicanos não estão sozinhos nisto... há muito jogo sujo também por parte dos Democratas, que aliás o ano passado fizeram tudo por tudo para estarem equilibrados no jogo sujo (o que conseguiram) e mesmo assim perderam a eleição. Talvez isto nos devesse ensinar alguma coisa sobre os frutos desta estratégia...
Mas se há alguma coisa que notamos claramente neste jogo é que os partidos políticos raramente estão sozinhos nisto, contando sempre com a ajuda de simpatizantes dos mais diversos quadrantes da sociedade. Assim, os liberais lançaram inúmeros ataques a Bush através de uma associação de independentes chamada MoveOn.org, enquanto os Republicanos contaram, entre muitas outras, com a ajuda de uma associação de veteranos da guerra do Vietnam chamada Swift Boat Veterans for Truth (espero não me ter enganado no nome) para denegrir a imagem de herói de guerra atribuída a Kerry. Tudo isto é lá (como provavelmente também o é cá) um intrincado jogo de lobbies em que o sector assumidamente político e a sociedade civil se imiscuem e interpenetram, criando um clima de hostilidade aberta entre os campos adversários.
A propósito do que se vai passando na presente campanha, vi no outro dia um programa na TV, desses noticiários que agora convidam políticos a toda a hora do dia, um debate entre dirigentes de PS e PSD (não vou fornecer nomes, perdoem-me a imprecisão, mas não chego para tudo) em que o representante do PS se mostrava indignado com os outdoors da JSD e o representante do PSD lhe respondia dizendo algo do género "então mas você não vê o que se passa lá fora? são estas as regras da democracia... então agora querem ter uma democracia e não querem jogar pelas regras da mesma?"
Era precisamente a este ponto que queria chegar. A democracia americana é sem dúvida uma das mais fortes e vitais de todo o mundo, foi exemplar para as outras e representa um sonho de liberdade que contagiou o mundo. Mas será que, por isso, devemos considerar que todos os exemplos que de lá nos chegam são positivos e devem ser imitados? Não será que deveríamos estabelecer para nós próprios um filtro que aproveitasse o positivo enquanto rejeita o negativo? O que acabamos por ver que se passa lá é que cada partido mostra estar (ou pelo menos, finge estar) ofendido com os ataques do outro e faz pedidos incessantes para que se "eleve o tom", sem com isso começar por dar o exemplo, abdicando ele próprio de se envolver em sórdidos ataques. Tudo isto me faz lembrar a malograda experiência da nossa I República, onde os debates parlamentares eram grandes lavagens de roupa suja e cujo tom polémico e jactancioso acabou por conduzir à desgraça da ditadura! Nos EUA já se começa a verificar um certo desgaste da sociedade perante este tipo de atitude, e alguns cidadãos menos extremistas protestam contra ela. Seremos nós mais espertos se nos envolvermos no mesmo processo, ou se pura e simplesmente o rejeitarmos?
Na minha opinião (que feliz ou infelizmente, não é nada original) a Democracia não é o sistema perfeito, é apenas o melhorzinho que conseguimos arranjar até agora, e deve ser mantido a todo o custo até que se consiga encontrar algo que se esteja pronto a receber que possa eventualmente ser melhor. Mas face a experiências passadas (e porque a humanidade devia tentar ao máximo aprender com os erros que vai cometendo) conseguimos facilmente chegar à conclusão que por agora, nenhum melhor sistema político conseguimos arranjar. A democracia é o melhor garante das liberdades individuais tão necessárias a uma satisfação particular que mantém a totalidade da população minimamente coesa. Mas o problema é que, precisamente pelas liberdades concedidas, este é um sistema político extremamente volátil. Muito facilmente pode explodir e degenerar em retrocessos que não seriam positivos para ninguém, excepto para o conjunto selecto que atingisse o poder. É uma frágil e fina flor, a nossa democracia. Tentemos não levantar um pé de vento demasiado grande (hey, um pouco de polémica nunca fez mal, mantém-nos acordados, mas há limites!) e tentemos não abrir caminhos que não nos serão positivos. Tentemos trabalhar e fazer disto um lugar melhor! Impôr-se aos outros não por valor próprio mas através de um atentado mesquinho é um extremo sinal de pusilanimidade...